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quarta-feira, 11 de junho de 2008

A árvore do bem e do mal



"E se um dentre vós pretende punir em nome da retidão e pôr o machado na árvore do mal, que considere também as raízes da árvore”.(Gibran Khalil Gibran).


Outubro de 1990. Fuad tinha dois filhos. Um menino surdo e uma menina lesada. Os pequenos se reconciliavam diariamente. Fraternidade onde antes se viu drama, porque a história não começa aqui, mas alguns anos antes, no Líbano...

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A tarde ensolarada convidava a um descanso. Mas naquela tarde não era descanso que Aziza procurava. Em seus pensamentos ressoava a sentença do pai:
-Casa este ano sim! Casa com Sunir como combinado.
Não podia argumentar. O casamento havia sido combinado desde quando eram crianças e Aziza jamais poderia contrariar o pai.
As lágrimas caíam, mas não conseguiam abrandar aquela quentura que Aziza sentia quando pensava em renunciar a Saumed, irmão de Sunir que tinha partido para o Brasil há algumas semanas.
A moça estava com 15 anos e a partida de Saumed selava o destino.
Os dias se seguiram sem agitação e os meses passaram num ápice.
Uma semana antes do casamento Aziza foi enviada para a casa de uma prima no campo, a fim de se preparar para as festividades que durariam três dias e foi lá que novamente se encontrou com Saumed. Surpreendida no parreiral o moço lhe deu a conhecer que ambos partiriam para o Brasil e lá se casariam.
Assim foi. Para desespero geral os dois jovens deixavam sua pátria e partiam cheios de expectativa. Apaixonados.
O ano era 1920 e a viagem para o Brasil era feita de navio. Levavam-se meses no mar e durante a viagem os jovens enamorados acabaram consumando o casamento.
O casal mal conseguia esconder a paixão e a moça suspirava pelo convés. Aziza sentia-se livre do jugo do pai e nela brotavam esperança e devoção.
Chegaram ao Brasil e como viajavam de terceira classe desembarcaram na Ilha das Flores. Após a quarentena seguiram de trem para o Rio Grande do Sul onde Saumed já tinha casa e emprego.
Durante algumas semanas Aziza e Saumed eram só carícias, o que durou pouco. Aziza acabou se tomando de amores por um alemão, de nome Ernesto.

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Ernesto e Saumed tinham se conhecido na primeira viagem do jovem libanês e fizeram uma espécie de amizade, muito prejudicada pelo fato de que um não entendia a língua do outro.
Ernesto viajava com a esposa e a sogra, mas as duas acabaram sofrendo um acidente. Caíram do navio.
O alemão desembarcou no Brasil sozinho e durante algumas semanas contou com a hospitalidade de familiares de Saumed, até que conseguisse se estabelecer como ferreiro, seu ofício na pátria de origem.

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Casaram-se então Aziza e Ernesto, passando a morar nos fundos da Estação Ferroviária.
A moça não sentia remorso. Ela não colocava limites para felicidade.
Saumed voltou para sua aldeia no Líbano e acabou se reconciliando com a família. Foi recebido por Sunir que achou já ter sido aplicado o castigo devido. E mais. Juntos planejaram se vingar de Aziza. Saumed trazia o coração amarrotado pela moça e Sunir carregava a vergonha de ter sido desprezado. Na aldeia, nenhuma moça direita se casaria com um largado.
Passado um tempo, os dois irmãos voltaram para o Brasil, se estabeleceram na casinha de Sunir e passaram a seguir Aziza.
Durante o horário de almoço, ficavam sentados na praça, traçando planos de morte enquanto viam Aziza passar para o mercado ou em direção ao empório.
Após alguns dias de vigia perceberam que a desgraçada estava grávida, e como cristãos que eram, decidiram aguardar que a criança nascesse.
E assim nasceram Frank, Ernesto Filho, Sabine, Alberto e Fuad e durante anos os irmãos aguardaram.
Aziza que havia percebido a espreita cuidara para que sempre tivesse um filho pela mão e outro no ventre.
O tempo passou e os irmãos acabaram se casando com moças brasileiras, se estabelecendo como negociantes respeitáveis.
Sunir tinha um boteco onde fazia quitutes que tinha aprendido com a mãe no Líbano. Seu modesto Trípole era freqüentado por todos e Sunir não deixava faltar o Kibe a Esfiha e maravilhosas pastas. Não faltava também o pastel e o cafezinho, dando um toque brasileiro para o local.
Saumed se tornara padeiro e todas as manhãs era possível vê-lo a pé, acompanhando a carroça carregada de pães. - Uma coroa para dona Mimosa, uma trança para as irmãs Bella, dez paezinhos para a família do seu Alfredinho...Tudo enrolado em papel de seda e entregue a domicílio antes das 6 da manhã pelo “Turco”, como ficou conhecido, e seu cavalo Nassif que já sabia de cor cada endereço
Aos domingos as famílias se reuniam e almoçavam embaixo do parreiral. Sunir jurava já ter visto Aziza espiando o almoço, mas fora isso, não mais tiveram notícias dela. Os planos de assassinato foram cancelados. Um alívio para os irmãos.
Para a libanesa Aziza, as coisas andaram diferente. Para ela a alegria tivera um preço pago com um poço de lágrimas. Durante os anos em que Aziza esteve grávida, Ernesto se afastou passando a apresentar reações estranhas. Mostrava-se irritadiço com a mulher e chegava a ficar uma semana fora de casa, quando se sabia estava na casa da Francesa que era jovem, bonita e sem compromisso com a moral.
Ernesto passou das injúrias à agressão física e Aziza não mais saía de casa envergonhada por tantos hematomas. As agressões se tornaram cada vez mais freqüentes. Até os filhos incomodavam o homenzarrão. Nem mesmo a pequena Sabine conseguia acalmar o pai.
Numa tarde de outono, ridiculamente bonita, Aziza estava sentada cerzindo algumas meias à beira do fogão quando Ernesto entrou na casa. Estava conturbado e depois de proferir algumas injúrias arrastou a mulher para fora em direção à ponte e depois para o mato.
Sunir e Saumed que passavam pela ponte viram quando o alemão entrou no mato com a mulher pelos cabelos.
Dela não se ouvia nem choro.
Entraram na mata e lá presenciaram a brutalidade de Ernesto que surrou Aziza até à morte, não sem antes bradar que a havia recebido impura. Acusou-a por sua infelicidade e por certo a cada golpe sentia o perfume da Francesa com quem pretendia se casar tão logo ficasse viúvo.
Saumed e Sunir viram, mas nada fizeram. Além do medo, havia um certo sentimento de justiça na cena. Contudo, não mais queriam a morte da moça.
Passada meia-hora o alemão, o homem fez cessar os golpes e rompeu-se em prantos e justificativas que, no entanto, não mais ressucitariam seu sossego.
Os dois observadores também choravam, não se sabe se pela morte ou pela violência, mas como estavam permaneceram até que Ernesto deixasse o mato.
Sunir deixou o esconderijo e junto com o irmão, carregou o corpo da moça, providenciando uma cova funda e uma cruz bem pequenininha. Afinal eram cristãos.
Apressaram-se em deixar a mata com medo de que alguém aparecesse e acabassem sendo acusados pelo assassinato, mas ao passar pelo local onde pouco antes Aziza perecera nas mãos do grandalhão, sentiram que alguém os observava. Perceberam então cinco pares de olhinhos assustados atrás da vegetação. Eram os filhos de Aziza que por certo tinham presenciado tudo e estavam ali, órfãos.
Como a cidade era pequena, resolveram levar as crianças para a casa de Sunir que ficava mais afastada. Sunir contou com o apoio da mulher e ambos providenciaram levar as crianças para longe.
Sabine foi para um internato em Santa Maria e os irmãos para capital.
Ninguém na cidade se preocupou com o desaparecimento de Aziza ou dos filhos e Ernesto seguiu vida alegremente enlutado.
Mas a Francesa, constatando o gênio de alemão, deixou a cidade, estabelecendo-se com suas meninas em Rio Pardo.
Os meses foram se passando e os anos prejudicaram a razão do alemão (que já não era muita). Um Ernesto perturbado, era visto na ponte próximo a mata falando sozinho. Chorava e urrava coisas, durante horas. Depois caminhava como bêbado pelas ruas até que era recolhido por algum dos poucos amigos que ainda lhe restavam.
Já não mais trabalhava e contava com a ajuda destes poucos amigos para comer.
Um deles era o Sr. Pasqual, o farmacêutico, que contava como Ernesto perdera o juízo. Dizia que o homão falava com os filhos e que estes eram diabinhos que lhe puxavam as sobrancelhas. Algumas vezes descrevia Aziza como um ser dos infernos que lhe atormentava dia e noite.
Uma noite o alemão chamou o padre e confessou o crime. Pedia que o vigário que ajudasse a recuperar o juízo.
O padre, sem disfarçar o escárnio, não acreditava que Ernesto recuperaria razão. Não acreditava que ele sequer havia perdido.
-Tu já visse, amigo Pasqual, louco que sabe que é louco?
Com o tempo, o homem ficou insuportável. Não se banhava e passava as noites bramindo que Aziza o deixasse em paz e levasse os bastardinhos.
Foi o que bastou para que os amigos o internassem num manicômio.
Numa noite de 1948, o alemão teve uma crise aguda, quebrando janelas e camas. Não podia ser contido por nenhuma força humana e descendo em desabalada carreira as escadas da instituição manicomial, rompeu todas as barreiras que encontrava vindo a atacar uma freira que chegava para as visitas da noite.
O homenzarrão gritando, nu e descontrolado, agarrou o pescoço da irmã e somente não lhe tirou a vida devido a um tiro certeiro na têmpora.
Alguns minutos depois, foram prestadas as declarações pelo oficial Fuad Kirtens que justificava ter atirado a fim de salvar a vida de irmã Sabine que chegava na hora da crise.
Prestados os esclarecimentos os dois deixaram a sala do supervisor e a freira se virando para Fuad determinou:
- Levemos nosso pai para ser enterrado com nossa mãe. Podemos até fazer uma cruz bem pequenininha. Afinal somos cristãos.


Gilda Satte Alam Severi Cardoso

MAGICOS VERANEIOS POR Gilda Cardoso



Acordei com um “frio na barriga”. Primeiro dia de férias e logo mamãe nos chamaria para tomar café e irmos para o Laranjal.
Laranjal era sinônimo de liberdade. Lá eu podia me espichar mais com minha bicicleta e quem sabe até fazer a volta na quadra.
Como sempre, faríamos as malas e logo mamãe começaria a retirar as roupas em excesso.
Olhei o relógio e já eram 9h. O que teria acontecido?
Minha irmã continuava dormindo e resolvi levantar para procurar meus pais.
O frio na barriga havia se transformado em “bola no estômago” e eu pressentia que havia algo errado.
Desci as escadas e vi meus pais conversando com dois senhores do Corpo de Bombeiros. Mamãe estava cabisbaixa. Parecia que a conversa não era boa.
Fiquei ali uns instantes, mas como a conversava estava muito demorada decidi chegar na sala para ouvir melhor.
Comecei a ouvir a conversa e a bola no estômago se transformou em nó na garganta.
Ouvi bem quando um dos bombeiros falou que o incêndio havia começado por volta de 04 horas da manhã. Pouca coisa havia escapado.
Logo pensei no Simpático, um cachorrinho que havia nos adotado no verão passado e agora era o guardião da casa.
Como se meus pensamentos tivessem sido captados o mais jovem dos bombeiros comentou que o “animalzinho estava bem e na casa do vizinho”.
Fiquei aliviada, mas ainda assim frustrada. Foi a primeira vez nos meus 12 anos de vida que pude entender bem o significado de frustração. Não que eu já não tivesse sentido pequenas insatisfações, mas aquela me havia chegado como algo maior. Dias de expectativa, planos, projetos, tudo parecia interrompido e de uma forma diferente alguém havia destruído nosso pequeno paraíso.
Girei nos calcanhares e corri para acordar minha irmã. Ela demorou um pouco a entender exigindo mais de uma repetição. Sua primeira pergunta foi:
- E o Pitinho?
Respondi:
- Não sei! Mas temos de esperar pelo pior.
Pitinho era como carinhosamente chamávamos um imenso Eucalipto que ganháramos há alguns anos e que havíamos plantado em frente a casa com direito a ritual e oferendas. A pequena árvore, não mais que um galhinho, ganhou até um bolo de chocolate representando as boas vindas.
Nós realmente tínhamos a capacidade de criar um mundo a parte no Laranjal. Um lugar mágico onde tudo tinha nome e até um tipo de “vida”. O Pitinho, nossa pequena floresta particular no mato em frente, um mão-pelada que algumas vezes invadia nossa casa e corria pelas tesouras apavorado com a nossa gritaria, alguns beija-flores que nos encantavam com sua graciosidade. Era um lugar que não poderíamos esquecer.
O veraneio era também o momento de ficarmos juntos. Papai e mamãe brigavam menos, recebíamos muitas visitas e o almoço não tinha hora para acontecer. Era fantástico!
No jardim em frente, papai construiu um caminho com tijolos. Logo ele virou uma estrada mágica, de onde não podíamos sair para não cairmos no “pântano” que era na verdade somente grama. Nos fundos da casa havia um enigmático milharal onde, segundo, nossa imaginação, deveriam morar espécies animais exóticas e quem sabe até perigosas. Sempre apostávamos para ver quem conseguiria entrar naquele tapete verde e dourado sem sentir medo ou gritar histericamente.
Mamãe entrou no quarto, visivelmente abalada, mas logo percebeu pelo nosso semblante que já sabíamos do ocorrido.
Primeiro veio a explicação de que nosso veraneio seria suspenso. Senti algo como sopa quente subindo pelo estômago até atingir minhas orelhas.
No início da tarde, sob protestos de papai, fomos todos até lá. Naquele tempo, a estrada era diferente, uma mão para ir e outra para voltar. Era feita de paralelepípedos e no caminho víamos muito poucas casas.
Chegamos em frente à nossa casa e talvez pelo fato de haver muita vegetação, num primeiro momento nos pareceu tudo normal, não fosse por um monte de entulhos queimados que estavam depositados junto ao meio fio.
O Pitinho estava e lá e sorria para nós. Ele realmente era imponente. Anos depois teve de ser arrancado, pois passou a representar um perigo em dias de tempestade e vento.
Uns latidos esganiçados e logo sentimos a chegada buliçosa do pequeno Simpático.
Enfim algumas alegrias naquele dia que foi uma montanha – russa de emoções.
Entramos com cuidado. Papai na frente. Logo pudemos ver o telhado caído na sala e muitos móveis queimados. Ainda se podia sentir um pouco de calor e por isso não chegamos até o fundo da casa.
Da sala pude enxergar o banheiro. Estava intacto e a cozinha também. Ao menos o fogo não tinha sido guloso, poupando algumas lembranças.
A casa ficava em um terreno enorme, tendo sido construída de modo a que havia muito espaço na rua.
Ouvimos mamãe nos chamando e corremos ao seu encontro. O jardim lateral também havia sido poupado.
- Mas mamãe...E o veraneio? Essa foi a pergunta mais idiota da minha irmã.
- Não tem veraneio, boba. Queimou tudo!! Vamos dormir onde? No chão?
Ela me olhou lacrimosa e por incrível que pareça deu a idéia mais brilhante impossível:
- Porque a gente não brinca de acampamento?
Mamãe olhou surpresa para a pequena e disse:
- Boa idéia! Montamos a barraca aqui. Podemos usar o banheiro e assim acompanhamos a reconstrução de tudo.
Senti vontade de rir de forma exagerada. Aquele seria o melhor de todos os veraneios. Mais um para nossa imensa lista de situações enigmáticas fruto da imaginação infantil que não gasta toda massa cinzenta na frente de uma TV.
Enfim minhas férias começariam. Enfim o Laranjal.