Quem sou eu

Advogada, livre pensadora, protótipo de escritora, mãe e esposa...

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Atravessando a ponte

A noite estava clara e fria. Já passava das nove e eu havia deixado o trabalho. Comecei o trajeto de sempre, mas naquela noite tudo parecia mais silencioso. Nenhum carro. As casas estavam adormecidas, com seus grandes olhos fechados. Nenhum burburinho de estudantes. Eu podia até ouvir meus passos na calçada úmida. Para me distrair comecei a rememorar o dia, buscando nele acontecimentos incomuns. Varri a memória e não achei nada mais do que um ordinário dia, com pessoas comuns e mal humoradas, entrando e saindo sem sequer um “bom dia!” Eu era invisível. No início me arrumava. Gastei o salário de três meses em roupas, sapatos e até perfume. Cheguei a me apresentar para alguns dos professores que mais freqüentavam o local, mas o gelo deles foi tanto que nunca mais ousei tentar nada.
Comecei a ler. Lia tudo. Consumi o material, estante após estante, e quase me sentia parte do universo de Madame Bouvary, Gregor Samsa ou Dom Casmurro.
Eles, os livros, eram os responsáveis por eu acordar todos os dias às 6 da manhã e caminhar 45 min até a Universidade onde eu trabalhava como bibliotecária.
Á noite, após terminar minhas tarefas eu lia mais um pouco e depois saía para mais 45 min de caminhada solitária em direção a minha casa vazia.
Eu morava sozinha, passando a Ponte do Sossego numa pequena casa com quatro cômodos e um jardim mal – cuidado.
Meus pais já eram falecidos e eu não tinha tido a sorte de encontrar um marido. Agora, com 45 anos já não me interessava mais.
Interrrompi minhas reminiscências com o barulho de passos vindo de trás. Quem seria? Com bastante medo virei e ... Nada. Não havia ninguém. Segui caminhando, mais apressada e assustada. Apurei os ouvidos para não ser surpreendida. Após dobrar a esquina da Redenção novamente ouvi passos, agora mais perto. Gelei. Meu coração acelerou. Só faltava a essa altura da vida ser atacada por um tarado.
Acelerei o passo, quase correndo, e vez ou outra olhava para trás. Numa dessas viradas, acabei me chocando com alguém. Minha bolsa caiu espalhando sacolas plásticas, livros, óculos, chaves, níqueis. Tudo pelo chão e eu a catar, ainda zonza com o encontrão. Vi que uma pessoa me ajudava. Tinha as mãos gordinhas, bonitas, quase femininas. Comecei a olhar para cima em direção ao desconhecido e me deparei com uma figura estranha. Simpática. Mas estranha. Era um homem de meia-idade, um pouco cheinho. Usava bigode e vestia algo apropriado para o século retrasado. Ele sorriu, se desculpando. Percebi um sotaque francês. Talvez fosse isso, era um estrangeiro. Eles se vestem de forma esquisita.
Agradeci, um pouco desconcertada, e ele falou:
- Honoré, muito prazer.
Respondi:
- Clarissa.
Arrumei minhas coisas e o senhor Honoré se propôs a me acompanhar.
Seguimos e logo estávamos conversando como se fôssemos velhos amigos.
Ao chegarmos à ponte, Honoré disse que não iria atravessá-la. Despedimos-nos.
Dormi muito bem naquela noite. Talvez a solidão pesasse mais do eu que imaginava.
No dia seguinte acordei na hora de sempre, preparei o café cantarolando, coisa que já não fazia há muito, e fui para o trabalho.
Na saída, na mesma esquina da noite anterior lá estava o Senhor Honoré. Caminhamos juntos até à ponte.
Ele era uma pessoa de muita cultura. Nasceu na França, se formou em direito. Gostei disso. Era advogado.
Foram 02 semanas de encontros diários, sempre da mesma esquina até a ponte. Honoré nunca atravessava a ponte.
Num dos encontros Honoré me falou de um grande amor. Fiquei um pouco enciumada e ele, percebendo, falou gracioso.
- Depois da minha Eveline, tu és a mulher mais bela que conheci. Aliás, tenho percebido mais cores em ti Clarissa. Ele sempre pronunciava meu nome.
Fiquei sem graça com a naturalidade daquele homem estranho, mas encantador. Fazia anos que não conversava com alguém de forma tão íntima. Na verdade, no meu mundo de livros, não existiam pessoas reais, mas, após os encontros com o estranho Honoré, passei a sorrir e percebi que os carrancudos da biblioteca até começaram a notar minha presença, ou eu a deles. Contudo, a felicidade agora estava nos trinta minutos com Honoré.
Honoré temia as mulheres, principalmente as maduras. Eu temia os homens. Honoré escrevia muito. Eu lia muito.
Quanta coisa se pode contar em trinta minutos. Como eram interessantes as histórias dele. Eu não sabia seu sobrenome, quem ele realmente era, mas parecia que eu o conhecia. Eu percebia sua essência e certo tom de tragicomédia fazia com que eu o achasse familiar.
Numa das últimas noites em que nos encontramos, o assunto girava sobre a solidão. Assunto que dominava já que vivia como se estivesse morta.
- Talvez o espelho te diga que o tempo passou, Clarissa, mas, está só começando. O entusiasmo é tudo o que não se pode perder - concluiu.
Os tons misteriosos de Honoré me encantavam e eu passava o dia meditando com suas palavras, enquanto catalogava livros.
Assim que desse arrumaria o jardim.
Ao cabo de duas semanas, saí no horário de sempre e encontrei Honoré. Observei-o de longe. Ele me parecia translúcido. Era como se eu divisasse uma imagem desaparecendo.
Ao chegar mais próximo a impressão diminuiu, mas pude perceber nele um olhar de despedida.
Caminhamos ate à ponte e ele, como sempre parou um pouco antes. Segurou minhas mãos frias e disse:
- Acho que não nos veremos mais. Atravessa a bruma e não olha para trás.
Como autômato, segui pela ponte, caminhando lentamente, atravessando a neblina que impedia se visse o outro lado.
Desobediente, me virei. Ele já não estava lá. Na noite seguinte fiz o trajeto sozinha, mas já não era eu quem caminhava. Era Clarissa. Sorri com esse pensamento.
Algumas semanas se passaram e numa tarde de biblioteca cheia, não pude deixar de perceber que um jovem professor me olhava de quando em vez. Ele era novo na universidade e havia escolhido um livro de Balzac. Lia e me olhava. Na saída recebi o livro e nossas mãos se tocaram. Um pouco sem graça, falei:
-Clarissa.
E ele:
- Giácomo
Naquela noite caminhamos juntos. A mesma bruma. Um pouco menos de silêncio. Conversa, sorrisos, passos lentos e Giácomo atravessou a ponte.