Quem sou eu

Advogada, livre pensadora, protótipo de escritora, mãe e esposa...

quinta-feira, 9 de agosto de 2007

A seita de Narciso

Estava atrasada. Tinha que terminar de me vestir e sair voando para a rodoviária. Aquele sábado seria diferente já que receberia a visita de minha prima Edith e uma amiga.
Para situar o leitor, Edith é minha prima em 2º grau e nos conhecemos desde pequenas. Contudo, nosso modo de vida e nossas aspirações acabaram nos fazendo tomar rumos diferentes. Sempre gostei muito de trabalhar e estudar. Edith não. Adoro as longas tardes de sábado distraídas com uma leitura. Edith não. Definitivamente a maturidade mostrou que não havia entre nós qualquer afinidade. Só que, por algum mistério do destino, Edith me adorava e não media esforços para me fazer visitas, o que sempre era motivo de preocupação. Edith é extremamente fútil e todos em minha casa fogem da coitada, pois não agüentam um minuto de conversa com ela. Conversa é modo de dizer já que Edith pode ficar horas falado de si, sem dar a chance do interlocutor fazer qualquer aparte. Em compensação ela é linda e muito rica o que contribui para que ela tenha sempre um séqüito a sua volta, pessoas vazias como ela embevecidas pela ostentação característica de Edith.
A estas alturas eu já estava atrasada o que por certo causaria grande incômodo a prima. Cheguei na rodoviária e fui encontrar as duas, Edith e sua amiga, na cafeteria. Ao me ver, Edith sorriu e aos gritinhos veio em minha direção. Ela parecia remoçada e eu poderia ser sua mãe.
- Gwenda que bom te ver! Estava agora mesmo comentando com Irene o quanto me agradam estas visitas.
A amiga, de Edith esboçara alguma coisa que me pareceu com um “muito prazer”, mas em tom tão baixo que parecia mais um sussurro ou um suspiro.
No caminho até o carro, Edith esclareceu o motivo da visita tendo me colocado no compromisso de acompanhar as duas a um encontro onde aconteceria a fundação de uma espécie de associação.
Assim foi.
Almoçamos. Fomos ao centro fazer umas “comprinhas” e depois nos dirigimos à casa da Senhora Isadora Lauter, conhecida socialite, onde aconteceria a primeira reunião da misteriosa associação.
Chegamos à residência e fomos recebidas por uma empregada que nos acompanhou a uma saleta onde já estava um grande grupo de mulheres de idade indefinida, cheirando a Chanel.
Sentei um pouco afastada, já que estava somente acompanhando minha prima. Passados alguns minutos (que me pereceram horas), a anfitriã Isadora Lauter entrou na saleta, desculpando-se pelo atraso e fazendo questão de beijar uma por uma das senhoras presentes inclusive esta ilustre desconhecida que vos fala.
Confesso que eu estava realmente curiosa para saber o que teria levado aquelas dezesseis mulheres a se reunirem em uma tarde de sábado e por isso passei a prestar atenção quando Isadora começou a falar.
Pude saber então que aquelas senhoras estavam lá porque pretendiam fazer um trabalho assistencial diferenciado. Pretendiam auxiliar jovens de baixa renda a fazer cirurgias plásticas, aplicações de botox, maquiagem definitiva e tudo o mais que elas consideravam essencial para melhorar a auto - estima e por via de conseqüência a qualidade de vida
Isadora achava a beleza essencial. Considerava a aparência como a porta de entrada para o sucesso. Uma mulher bonita e jovem poderia fazer um bom casamento e por mais antiquado que parecesse ainda considerava a forma mais segura de subir na vida.
Por um instante eu pensei estar participando de uma pegadinha, como estas que muitas vezes vemos na TV, mas percebi logo que elas falavam sério.
De vez em quando, Edith me olhava buscando minha aprovação, parecendo excitada com a idéia, mas logo voltava ás atenções à matrona que ficou por mais de meia hora discursando para a platéia que parecia tão encantada que esperei aplausos quando ela finalmente terminou a fala. Isadora passou a palavra à Edith. Nesse momento, fiquei sabendo que minha prima era a idealizadora do projeto e seria encarregada de organizar tudo.
Edith discursou por mais meia-hora tendo dito inclusive que contaria com a inteligentíssima prima Gwenda para auxiliá-la.
Eu poderia ter me levantado ou mesmo sorrido, mas na verdade fiquei muda e paralisada. Eu! Participando de uma associação inútil daquelas. Cheguei a pensar em internar cada uma delas.
Após a reunião, foi servido o chá, com guloseimas demais para pessoas tão anorexicas. Acredito que ninguém além de mim chegou perto dos docinhos. Enquanto saboreava o chá lembrei do pobre Narciso, aquele da lenda, que de tão fascinado por sua beleza, acabou caindo no lago e se afogando.
A vida daquelas mulheres era assim, uma eterna contemplação de sua própria beleza, nada mais que uma capa protetora contra seus fantasmas interiores. Espectros siliconados, calçando Prada, bebendo Champanhe e pensando que venceriam o passar dos anos com intermináveis cirurgias plásticas.
Os filhos eram investimento. O marido, fonte de renda. As amigas, pessoas com quem competir.
São egocêntricas compulsivas. Solitárias crônicas. Perdidas no mundo da beleza e do culto ao corpo, sem saber que sua passagem na vida não significará nada.
De repente me vi com pena daquelas mulheres que riam da própria frivolidade e ainda se alçavam em promover a socialização dessa frivolidade.
Alguém tocou em mim. Era Irene informando que gostariam de ir embora.
Edith e Irene foram ainda até minha casa e durante o trajeto fizeram planos para a próxima reunião. E eu que fiquei calada a maior parte do tempo, lembrando orgulhosa o quanto eu desprezava toda aquela ignorância, disfarçada de opção, mas encarceradora do ser humano vaidoso e imprudente como Narciso encarcerado pela própria imagem.
Eu ainda preferia a liberdade de um chopinho no fim-de-semana, uma pizza com a família e os amigos e uma boa caminhada no parque. Tudo popular, simples e verdadeiro como aquelas ruguinhas novas que já apareciam no canto dos meus olhos. (Gilda Satte Alam Severi Cardoso)

Reflexão sobre a morte

Sempre me debato em divagações filosóficas a respeito da morte. Não gosto de enxergá-la como algo simplesmente inexorável, resultante de um determinismo totalitário. Se assim fosse seríamos nada mais do que marionetes do destino. E que tipo de gênio perverso controlaria os fios da vida e decidiria o momento de rompê-los? Seria como o mito grego das parcas, divindades infernais responsáveis por fiar, dobrar e cortar o fio da vida. Desde sempre houve preocupação com a imprevisibilidade da morte, mas eu chego mesmo a questionar se a vida seria tão fátua e terminaria assim, num átimo de segundo. Porque então haurir forças em um aperfeiçoamento incessante vida afora se num instante podemos desaparecer. É isso mesmo, desaparecer, deixar de existir. Mas porque mesmo eu comecei a matutar essas idéias tão tristes? Ah! Lembrei. Foi por causa do garoto que mora com a avó no prédio da esquina. Ele está sempre lá, lendo para a velhinha isquêmica, cuja tez cerosa e o olhar vago em nada denotam a existência de vida. Na verdade a velhota tem vida, porque respira. Mas vida é isso? Respirar? E morte? É parar de respirar? Nascemos com uma porção enorme de vida e nós mesmos tratamos de gastar, como perdulários insensatos, o combustível de milhares de quilômetros em poucos metros. Deveríamos romper com a idéia absurda, de que tanto faz fumar dez maços de cigarro por dia ou fazer jogging. Morreremos de qualquer forma. Ah! Meu avô. Tolo iludido com o drinque de todo dia. Que prazer tem afinal o de beber sem medida até chegar ao estado de consciência igual ao da velhota da esquina e depois dormir. Alguns preferem mesmo não viver. Fechar os olhos e caminhar dia-a-dia como autômatos, programados para fazer dinheiro e mais dinheiro e comprar coisas. Podemos nos empanturrar de batatas fritas ou alface, afinal nosso corpo perecerá e com ele a vida. Melhor viver com mais prazer então. No final tudo se apagará como uma vela que queima e mergulha tudo na escuridão. Não, prefiro pensar que somos imortais, que comer alface permitirá que a minha existência tenha significado. Quem perece é a carne. E eu não sou só um pedaço de carne. Eu tenho vida e ela um dia irá migrar para onde possa ser reaproveitada. Como um pedaço do todo que retorna depois de fortalecido pela experiência do corpo sólido. Não posso entender que sentimentos, conhecimento, dedicação ao próximo ou mesmo amor, sejam jogados no vácuo sem qualquer proveito. Almas não podem dormir eternamente nos sarcófagos. Não somos peças de reposição, mas com certeza pedaços de uma engrenagem maior que se chama vida, eterna, como acreditavam os Egípcios. Depois dessa, vamos para uma melhor. Uns vem, outros vão. A velhota vive dentro do corpo isquêmico e se regozija com a terna leitura do garoto. E a ele cabe a tarefa de enriquecer a essência da idosa, preparando seu retorno para o todo, acalentada pela dedicação do neto, revigorada por saber que não foi esquecida. E a ela, por certo foi oportunizado um momento de reflexão ao ser aprisionada dentro daquele organismo frágil. Mas quantos de nós sem o sabermos, não estamos também vivendo dentro de uma prisão, um corpo bruto, de sangue e músculos, esperando a morte e vivendo como se nada representasse mais que um pequeno momento. Deixando de ser a peça fundamental da engrenagem da vida e virando lataria enferrujada. Estou com vontade de levantar dessa poltrona agora mesmo e ir até a esquina abraçar o garoto pedindo-lhe que nunca deixe de ler para a avó e assim mantenha em mim a certeza de que afeto é vida, que ela existe e que nada, nem a morte, podem fazê-la desaparecer. (Gilda Satte Alam Severi Cardoso)

A melhor saída



O espaçoso quarto do casal estava na penumbra e ambos, Gwenda e seu marido, estavam ajoelhados sobre uma pilha de almofadas.
Nelas repousava Juscelino, um cãozinho de porte médio, sem raça definida, muito peludo, marrom e preto. O cãozinho dormitava sobre as almofadas e por vezes soltava um gemido baixo.
Gwenda afagava o cãozinho enquanto as lágrimas caíam.
De repente, quebrando o silêncio ela encarou o marido e disse quase gritando:
-Isso é eutanásia sabia? Morte misericordiosa... Tu sabes o que ele representa para mim. Muitos me têm como louca, estes mesmos que não entendem nada de amizade. Quando eu chego, cansada, ele ta ali, me olhando. Acompanha-me por toda casa, pois não quer me ver só. Quer estar disponível caso eu precise dele. Entende?!
O marido, cabisbaixo argumentou:
- Amorzinho, eu também amo esse pequeno abrigo de pulgas sem teto. Mas ele não poderá mais caminhar. Como vamos fazer?
- Ora, vamos cuidar dele. Como seria se eu não pudesse mais caminhar?
- Gwenda, não diga besteiras. Ele é um cão!
- Tu és igual aos outros. Pois bem, espero que não fiques doente e dependas de mim para escolher se deves viver ou não.
Nesse momento, Michela entrou no quarto, assustada com o tom da conversa entre os pais.
- O que há “papi”?
- Tua mãe se recusa a dar um alívio para o pobre Juscelino. Ele não pode mais caminhar, já que as patas traseiras foram condenadas e ela acha que queremos simplesmente matar o cão!
- E não é isso mesmo “papi”? Será que não tem outro jeito, podemos procurar especialistas...
-Michela, ele é um cão!!
-Basta! Gritou Gwenda. Deixem-me aqui. Vou conversar comigo mesma e decidiremos o que fazer. Eu e eu mesma. Entenderam?
Os dois saíram e Gwenda ficou ali deitada ao lado de seu amigo e começou a conversar com o cãozinho.
- Ás vezes eu penso que não estou boa da cabeça mesmo amiguinho. Eu sei que tu não falas e que és um cão. Um pequeno abrigo de pulgas sem teto. Mas quando estou na rua trabalhando, sinto falta de ti e tenho vontade de chegar logo em casa para receber a festa que sei, tu farás. Sei que os cães não vivem muito, mas, tu estas ainda tão jovem. Ainda sobraram alguns tapetes de banheiro que não foram roídos e eu comprei pantufas novas para brincarmos à noite...
Gwenda chorava e Juscelino gemia. Eram duas criaturas sentindo dor.
Gwenda ligou a TV e acomodou Juscelino ao seu lado na cama. O cãozinho gemeu um pouco, mas logo enfiou o focinho embaixo das cobertas.
Ficaram ali por quase duas horas e Gwenda chorava ao ouvir o animalzinho gemer, cada vez que tentava se levantar.
- “Juju”, o que tu queres que eu faça?
O pequeno animal abriu seus grandes olhos negros e fitou Gwenda por alguns instantes voltando a enfiar o focinho nas cobertas.
Quando o marido de Gwenda voltou para o quarto, Juscelino levantou a cabeça e ficou olhando para o dono. Tentou levantar para a festinha habitual, mas não conseguiu, voltando a gemer.
- Gwen, o veterinário ligou, pediu que fôssemos vê-lo. Tu preferes que eu vá sozinho?
- Mas eu disse que ligaríamos assim que eu decidisse o que fazer. Quanta insistência para assassinar um pobre animal... Bem vou me vestir, já tenho a resposta para ele.
- Amorzinho, não precisamos ir agora, e nem precisa ser hoje.
- Olha só, decisões difíceis têm de ser tomadas logo. Chame Maria e peça que traga as roupas do Juscelino. Quero escolher uma bem bonita.
O marido saiu, sem dizer nada.
Em seguida entrou Maria, a empregada chinesa, com as roupas do pequeno “Juju”, dispondo-as sobre a cama.
Gwenda escolheu um traje escocês lindo e colocou no bichinho bem devagar para que ele não sentisse dor.
- Venha querido, é hora de dizer adeus.
Desceram as escadas e Michela cabisbaixa não disse uma palavra resumindo-se a afagar o amiguinho pela última vez.
- Que injustiça “mami”. Só porque ele é um animal...
Gwenda sem dizer nada entrou no carro com Juscelino. Abriu o vidro e disse ao marido:
- Vamos só eu e ele. Até mais tarde.
Deu a partida no carro e foi até a clínica lá permanecendo por pouco mais de 20 minutos, saindo após esse interregno com sua carga preciosa nos braços.
Quando chegou em casa, foi recebida por Maria e seu marido que viram entre sorrisos e lágrimas Juscelino descendo do carro no colo de Gwenda abanando a ponta do rabo que escapava da roupa.
- Amorzinho, fiquei tão arrependido, ainda bem que mudaste de idéia. Bem vindo amigo! Bem vindo!
- Ora, não mudei de idéia.
- Mas a senhora disse que era hora de dizer adeus... Eu achei e o patrão também que...
- Sim, mas não mudei de idéia. Realmente era hora de dizer adeus. Adeus ao Dr. “vamos ter de sacrificá-lo”. Mudamos de veterinário. Na verdade agora temos uma veterinária e ela me assegurou que “Juju” com uma pequena cirurgia poderá até caminhar. Vai dar um pouco de trabalho, mas, o que não fazemos por um amigo, não é verdade? Agora vamos que está muito frio e não queremos pegar uma gripe.
Dizendo isso ao animal que mais parecia uma bola de pelos enrolada em tecido xadrez, entraram todos fazendo festa ao cãozinho que gemia cada vez que recebia um abraço. (Gilda Satte Alam Severi Cardoso)

São muitas as faces ...

Naquela tarde de sábado fazia muito frio e Gwenda se entregava ao maior de seus passatempos: uma boa leitura em sua biblioteca particular.
O tempo estava tipicamente londrino o que inspirava a proximidade de uma lareira e quem sabe um chá com bolinhos.
Naquela tarde, Gwenda estava absorta em sua leitura quando a velha empregada chinesa adentrou a biblioteca informando que “uma tal de Adrienne” estava aguardando no hall e esperava ser recebida.
Como sempre, Gwenda não conteve o riso com o excessivo formalismo de Maria. Sim, porque a empregada chinesa era chamada por todos de “Maria” (mas isto é uma outra história).
- Está bem Maria, manda Adrienne entrar. É uma velha amiga da escola. Aproveite para preparar um chá com seus famosos bolinhos.
- Sim senhora. Respondeu a velha empregada.
Antes da empregada sair, Gwenda advertiu com expressão divertida:
- Ah! E por favor, não coloque papeizinhos dentro deles. Não raro me engasgo com minha sorte.
- Sim senhora. Respondeu a empregada olhando de esguelha com aqueles minúsculos olhos orientais.
Passados alguns segundos, Adrienne adentrou a biblioteca, sendo precedida pelo perfume doce e pelo ruído forte que fazia com os sapatos.
As duas se abraçaram, já que fazia muito tempo que não se viam.
Sentaram-se e, após um instante de incômodo silêncio, Gwenda resolveu começar a conversação.
- Pois bem Adrienne, estás muito bonita. Mais magra! E o modelito está esplêndido.
- Obrigada Gwenda, tu também continuas muito bem.
Mais silêncio.
Movida pela curiosidade, Gwenda resolveu ser mais direta.
- Bem, o que a traz a minha casa em um dia tão frio e feio como este? Desculpe se estou sendo indelicada, mas...
Não foi preciso terminar a frase para que Adrienne dissesse a que viera.
- É verdade Gwen. Por certo que não se trata de uma visita comum. Na verdade estou com um problema familiar e pensei que tu serias a pessoa indicada para me aconselhar. Talvez devido às nossas profundas diferenças.
Gwenda, em um rápido flash de memória compreendeu o que a amiga estava querendo dizer.
O fato é que ambas eram muito amigas na escola com o porém de que Adrienne era absolutamente conservadora e Gwenda era tida como excêntrica, pouco adepta a seguir convenções sociais.
Adrienne prosseguiu.
-Lembro de como conversávamos na escola e o quanto discutíamos assuntos diversos, sempre em lados opostos e por isso acho que minhas preocupações do momento poderão encontrar solução com mais uma desta “conversas”.
Gwenda, absolutamente tomada pela curiosidade quase não se conteve em começar a sacudir a amiga para que falasse que assunto tão importante justificava a inesperada visita.
- Gwen, tu sabes que eu sou uma pessoal normal. Que gosta de tudo normal, assim, dentro das convenções. Freqüento a igreja, cuido da minha casa e de minha família. Tudo absolutamente normal.
E prosseguiu.
- Acontece que na quinta-feira à tarde eu estava na minha saleta de costura e minha filha mais velha Tatiana estava no quarto estudando com uma coleguinha. Você lembra da Tatiana não é?
Gwenda lembrava e satisfeita mencionou que ela e sua filha Michela estudavam juntas no curso pré-vestibular.
- Pois bem. Resolvi nesse dia fatídico levar uma limonada e umas bolachinhas para espantar o sono das meninas, já que o estudo durava mais de duas horas. Chegando no quarto abri a porta e me deparei com a cena mais indescritivelmente nojenta da minha vida. As duas estavam ali beijando-se de forma indecorosa, quase sem roupa com clara intenção sexual e eu, embasbacada, deixei cair tudo o que trazia e comecei a gritar feito uma louca. Saí correndo e desci as escadas tão rápido que quase tropecei no Felix, nosso gatinho, só conseguindo parar na cozinha onde sentei ofegante e comecei a chorar.
A essa altura, Gwenda pensava consigo mesma, que nunca tinha ouvido tanta frescura na sua vida, mas incentivou a amiga, que já começava borrar a exagerada maquiagem com as lágrimas que caiam teimosamente.
E Adrienne prosseguiu.
- Após alguns minutos, a coleguinha desceu as escadas e passou por mim em direção à porta da frente, vencendo a rua sem sequer se despedir de mim. Tatiana desceu em seguida e se postou na minha frente dizendo que sentia muito que eu tivesse descoberto as coisas dessa maneira, mas que aquela era a realidade. Ela estava apaixonada e eu teria de me acostumar. Fiquei pasma e muda. Aleguei uma forte enxaqueca e me retirei. Agora aqui estou. Desde então não troquei uma só palavra com minha filha e sei que ela continua se encontrando com a “amiga”, fora de casa.
Nesse instante da conversa, Maria entrou na biblioteca trazendo uma bandeja com chá e bolinhos, esclarecendo com indisfarçável mágoa, que eram bolinhos sem papelzinho, como eu havia pedido.
Aproveitei para acalmar o clima tenso que se formara, pensando no porque de Adrienne ter vindo expor tais intimidades logo para mim.
Servi o chá e passei a falar com Adrienne a fim de que a amiga descansasse um pouco. Achei que uma pausa lhe faria bem.
- Bem Adrienne, acho que terás de enfrentar tal situação livre de preconceitos. É comum nos dias de hoje que os jovens acabem descobrindo a sexualidade com parceiros do mesmo sexo. Às vezes é passageiro. Outras vezes é realmente a opção sexual destas pessoas que, aliás, são tão normais como outras quaisquer.
Gwenda ficou alguns minutos discorrendo sobre a liberdade sexual e mencionando todas as teorias que se lembrava no momento e que poderiam colocar Tatiana em uma situação mais favorável, chegou a pensar em voz alta: “Pobre menina!”
Continuou de forma professoral.
- Tens de aceitar tua filha e mantê-la próxima de ti, caso contrário, não poderás acompanhar a situação e até ajudar Tatiana em suas necessidades.
Gwenda fez uma pausa incentivando Adrienne a tomar mais um pouco de chá, sendo que ela mesma se serviu de mais uma xícara, pois tinha ficado com a garganta seca.
Adrienne foi quem primeiro quebrou o silêncio.
- Fico feliz Gwen em te ouvir assim liberal e livre de preconceitos, pois, tenho de te dizer que as coisas não são tão simples assim.
Esta última frase foi dita de forma tal que Adrienne não conseguiu disfarçar uma certa satisfação e prosseguiu mais calma.
- Digo isso porque a amiguinha de quem falo é exatamente Michela.
Gwenda chegou a se engasgar com um bolinho que acabara de colocar na boca e o choque deve ter sido grande, pois a face ficou pálida de maneira tal que Adrienne chegou a levantar de sua cadeira para ajudar amiga.
Gwenda levantou-se subitamente e derrubou a bandeja com o chá e os bolinhos, o que chamou a atenção de Maria que entrou na biblioteca assustada.
Ato contínuo a patroa perguntou à empregada:
- Maria, Michela está em casa?
- Tá sim senhora. Ta lá em cima estudando com uma coleguinha.
Gwenda, sem esquecer a expressão “beijando-se de forma indecorosa”, olhou para Adrienne e declarou transtornada e quase gritando:
- Vamos terminar com esta pouca vergonha já!
Passados algumas semanas, após a “conversa” com sua filha Michela, esta trouxe Fabrizio, um namoradinho novo e aquela baboseira de homossexualismo foi esquecida na família. (Gilda Satte Alam Severi Cardoso)