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domingo, 28 de agosto de 2011

Um pouco de animalidade

Era a República dos Siameses. Todos os animais depositaram confiança nos felinos que tinham se mostrado capacitados para governar em tempos tão difíceis. Os humanos, embora dotados de inteligência e linguagem própria, continuavam procriando desmedidamente. A violência nos bairros por eles habitados era enorme. Furto, drogas, calúnias. Cada vez mais escolas para humanos eram criadas, programas de saúde eram implantados, crianças eram adotadas por cidadãos animais que as recolhiam para os seus lares, na esperança de ensinar-lhes um pouco de “animalidade”. Conceitos como humildade e fidelidade eram incessantemente repassados aos pequenos humanos, mas não raro muitos se desviavam. Era-lhe da natureza a soberba, a ausência de respeito ao próximo. Desde pequenos mostravam sua necessidade de acumular coisas inúteis, de competir por melhores posições em uma sociedade que já não mais vivia sob a égide do capitalismo agressivo. Desde a ascensão dos animais ao poder, depois da grande guerra que dizimou grande parte da população de humanos, o planeta, governado sempre pelos “irracionais”, já havia iniciado significativa recuperação ambiental, embora a destruição ocasionada pela Era dos Homens, tornasse quase impossível o refazimento completo da fauna, da flora, dos mananciais hídricos e do ar. Dentro desse quadro de restabelecimento os animais domésticos de variadas espécies decidiam em conjunto acerca de regras e planos de ação e denotavam grande preocupação com relação a alguns grupos de cães e gatos, antes maltratados, que buscavam uma espécie de vingança dirigida ao homem, autor, é certo, de grandes crueldades. A lei maior que orientava todas as demais falava do necessário respeito que seria devido a todos os seres vivos, ainda que humanos, pois, dizia um ancião: “Eles não sabiam o que faziam.” Aos humanos, contidos pela superioridade dos animais, eram dadas todas as condições de sobrevivência digna, mas o impulso destrutivo era ainda forte e o homem tendia a arruinar tudo por onde passava em nome de um conforto que entendia lhe era devido, a par do aniquilamento dos demais. Viviam, não como se não existisse amanhã. Por certo que sabiam que outras gerações se lhes seguiriam, apenas não se importavam. Foi nesse mundo, modificado pela providencial ação dos animais, que se viu quando Ping, um gato brasileiro, sem raça definida, ao passar às margens do canal São Francisco, abriu a porta de seu veiculo (movido a energia solar) e atirou uma sacola enorme. Transeuntes que passavam no local perceberam que a sacola se movia e correram para socorrer quem tinha sido aprisionado de forma tão cruel. Depararam-se com uma criança com cerca de 10 anos, tipo mignon, cabelos desgrenhados, denotando desidratação e subnutrição. Alguns horrorizaram-se com o estado da humana. Inobstante isso, seguiram seu caminho. Outros começaram a correr feito loucos buscando ajuda, preocupados. Outros ainda comentaram à distância que aquilo era bem feito. Quantos irmãos tinham sido jogados naquele canal, envolvidos em sacolas de lixo, atirados sem piedade como se não sentissem dor ou medo. Ninguém quis recolher a humana, e os poucos que antes se mostravam mais ansiosos em ajudar logo arrefeceram a vontade entendendo que não tinham local adequado para “hospedá-la” até que se recuperasse e pudesse, quem sabe, ser adotada por alguma família. Nesse ínterim, chegaram as autoridades que nada puderam fazer, o humanil municipal estava lotado e lá era proibido dois humanos em um apartamento. Não era permitida a superpopulação. Foram todos embora e a humana ficou lá em agonia por algumas horas, até que finalmente expirou. O fato não passou despercebido do Grande Conselho, que tão logo tomou conhecimento da situação, mandou recolher o corpo da humana dando-lhe um destino digno e determinando a prisão de Ping. Esse tipo de crueldade, ainda que com humanos, era crime na sociedade dos animais. Diziam eles que uma sociedade evoluída não permitia que ações como essa ficassem impune. Um animal de caráter jamais agiria de forma a impor sofrimento a quem quer que fosse, ainda mais aproveitando-se de sua superioridade física para subjugar um outro ser vivo. Aquilo era um desvio que tinha de ser contido sob pena de vir a sociedade pacífica e fraterna, surgida após a grande guerra, se tornar uma sociedade pérfida e destrutiva como tinha sido a Era dos Homens. Ping foi preso, julgado (em tempo razoável) e condenado.

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