Sempre me debato em divagações filosóficas a respeito da morte. Não gosto de enxergá-la como algo simplesmente inexorável, resultante de um determinismo totalitário. Se assim fosse seríamos nada mais do que marionetes do destino. E que tipo de gênio perverso controlaria os fios da vida e decidiria o momento de rompê-los? Seria como o mito grego das parcas, divindades infernais responsáveis por fiar, dobrar e cortar o fio da vida. Desde sempre houve preocupação com a imprevisibilidade da morte, mas eu chego mesmo a questionar se a vida seria tão fátua e terminaria assim, num átimo de segundo. Porque então haurir forças em um aperfeiçoamento incessante vida afora se num instante podemos desaparecer. É isso mesmo, desaparecer, deixar de existir. Mas porque mesmo eu comecei a matutar essas idéias tão tristes? Ah! Lembrei. Foi por causa do garoto que mora com a avó no prédio da esquina. Ele está sempre lá, lendo para a velhinha isquêmica, cuja tez cerosa e o olhar vago em nada denotam a existência de vida. Na verdade a velhota tem vida, porque respira. Mas vida é isso? Respirar? E morte? É parar de respirar? Nascemos com uma porção enorme de vida e nós mesmos tratamos de gastar, como perdulários insensatos, o combustível de milhares de quilômetros em poucos metros. Deveríamos romper com a idéia absurda, de que tanto faz fumar dez maços de cigarro por dia ou fazer jogging. Morreremos de qualquer forma. Ah! Meu avô. Tolo iludido com o drinque de todo dia. Que prazer tem afinal o de beber sem medida até chegar ao estado de consciência igual ao da velhota da esquina e depois dormir. Alguns preferem mesmo não viver. Fechar os olhos e caminhar dia-a-dia como autômatos, programados para fazer dinheiro e mais dinheiro e comprar coisas. Podemos nos empanturrar de batatas fritas ou alface, afinal nosso corpo perecerá e com ele a vida. Melhor viver com mais prazer então. No final tudo se apagará como uma vela que queima e mergulha tudo na escuridão. Não, prefiro pensar que somos imortais, que comer alface permitirá que a minha existência tenha significado. Quem perece é a carne. E eu não sou só um pedaço de carne. Eu tenho vida e ela um dia irá migrar para onde possa ser reaproveitada. Como um pedaço do todo que retorna depois de fortalecido pela experiência do corpo sólido. Não posso entender que sentimentos, conhecimento, dedicação ao próximo ou mesmo amor, sejam jogados no vácuo sem qualquer proveito. Almas não podem dormir eternamente nos sarcófagos. Não somos peças de reposição, mas com certeza pedaços de uma engrenagem maior que se chama vida, eterna, como acreditavam os Egípcios. Depois dessa, vamos para uma melhor. Uns vem, outros vão. A velhota vive dentro do corpo isquêmico e se regozija com a terna leitura do garoto. E a ele cabe a tarefa de enriquecer a essência da idosa, preparando seu retorno para o todo, acalentada pela dedicação do neto, revigorada por saber que não foi esquecida. E a ela, por certo foi oportunizado um momento de reflexão ao ser aprisionada dentro daquele organismo frágil. Mas quantos de nós sem o sabermos, não estamos também vivendo dentro de uma prisão, um corpo bruto, de sangue e músculos, esperando a morte e vivendo como se nada representasse mais que um pequeno momento. Deixando de ser a peça fundamental da engrenagem da vida e virando lataria enferrujada. Estou com vontade de levantar dessa poltrona agora mesmo e ir até a esquina abraçar o garoto pedindo-lhe que nunca deixe de ler para a avó e assim mantenha em mim a certeza de que afeto é vida, que ela existe e que nada, nem a morte, podem fazê-la desaparecer. (Gilda Satte Alam Severi Cardoso)
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3 comentários:
Ficou bom o texto!Enxuto e fácil de ler. Quanto ao conteúdo, posso dizer que fico com as batatas fritas pois combinam melhor com carne.
Acho que manténs o estilo (enxuto e claro), teus textos trazem sempre reflexão e gosto disto.
Apesar de discordar da argumentação, está muito bom. Advogaste a favor da vida com maestria. Sem dúvida é teu melhor texto!
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